epiderme

Pedro Fiuza nasceu em mil novecentos e oitenta. Ainda é cedo para qualquer nota biográfica.

texto 1

Admiro seres de ouro mas onde

Em que paisagem os encontro

Se puder fechar os olhos

E sonhar o meu vazio

Vazio de mim vazio no mundo

Em estranhas viagens circulares

texto 2

De um lado há o terror vazio e solitário do silêncio,

São transformações físicas já desenganadas com o tempo,

Tapo o corpo com lençóis de água na casa de ninguém,

O barco vem e leva-me,

Vomito constantemente nas viagens forçadas da vida.

Sou contra a corrente que me engorda

E faço ginástica contra si ao dormir.

Não sei ainda se há o outro lado,

Há quem faça relatos de brilho para a falsa exibição da alma

E também há um frio no olhar que sente ou pressente um outro tempo.

O tudo insiste-se como uma alucinação constante

Sempre criada no sentido da viagem.

Se existe regresso?

Ninguém o sabe,

Ninguém voltou para contar a história do outro lugar,

Talvez o lugar zero,

O nascimento.

texto 3

Por vezes nas viagens há olhares que se reconhecem, são mecanismos efémeros que cintilam no interior da memória. Talvez te tenha já visto num dia de chuva, resguardada por uma outra pele que não essa. Talvez a tua forma viajante seja o vulto ambíguo que encontro em todos os sítios. Talvez até tenhas um nome, uma casa, um jardim com plantas e com gatos. Tenho felizmente a certeza que te verei de novo, noutro tempo, com este ou outro corpo. Talvez a nossa forma se reconheça se tudo estiver certo.

texto 4

Quando ficar com os olhos dos outros dentro de mim

Marcadamente despidos os olhos invioláveis da castração

Se percorrerem caminhos simulacros de muitas vidas

As imensas formas respiradas de desperdício um acordar

Não será medo o conceito que surgirá nestas mãos

Um acordar a explosão violenta do corpo enquanto espasmo

O movimento anulador da linguagem do horror da linguagem

O gesto vivo do fumo presente nos aglomerados do espectáculo

A angústia que circula medíocre nos antros circenses

Os antros a imensidão da vulnerabilidade reprimida

Nada faz sentido a forma foi-se a repetição e o dejecto

Nada é mais do que a construção lenta da própria morte

Então também o que sinto se aproxima do extermínio

A absolutização do vazio deste corpo que revolta as coisas

Quando me rir como certos astros desconexos de vontade

Quando encontrar em mim a salvação da minha carne

Mundo mulheres vereis o meu rosto de desolação

Esfaquear o vosso crânio com imagem absoluta do amor

texto 5

É uma cidade. Há o ritmo. Ruas com as suas casas com as suas portas com as suas grandes janelas de vidro. É uma cabeça. Uma solidão. Primeiro é apenas uma sombra. Uma cabeça que vai ganhando a sua última forma. Há uma quebra no ritmo. A cidade desaparece. Só há a cabeça. Definitiva na forma. É uma cabeça negra. Através do vidro. Encostada ao vidro. Certamente frio. Nas imagens da infância seriam uma cabeça e um gato. A infância. Uma velha e um gato. É demasiado fácil viver um sonho. É a cabeça. Quero voltar à cidade. As ruas e as casas e as portas e as janelas. Nenhuma cabeça desta vez. Quero voltar ao ritmo. Cidade. Solidão nenhuma. Segredo nenhum. A cidade grita-se. A cidade revela o seu lado de sombras. É a luz. Sem luz não há sombra. A cidade percebe-se dentro de si. É um esquema matemático. O ritmo. Todas as coisas têm o seu ritmo. A infância é lenta até que de repente passa. Simplesmente passa. Depois é tarde. Os fantasmas. Todos. Bons e maus. Fantasmas. É o ritmo do depois das coisas. Aquilo que fica a fazer parte das coisas. É o início. É quando se cria o problema. É uma questão de problema. É tudo uma questão de problema. É tudo uma questão da resolução do problema. Em busca da resolução. Ou partir. Ou permanecer. Nada é previamente dado. Ponto.


texto 6

E abriam o corpo as crianças

Dominadas por uma lentidão magnífica astrológica

Um tempo quase insuportável de ignorância

O medo da descoberta a descoberta do medo

Os brinquedos tocados como inimigos inquebráveis

A caça dos escaravelhos o temor abstracto das raparigas

Os putos com os seus jogos vida nas pontas das unhas

Aquelas unhas maquinais cobertas com terra líquida

Noutros olhos de cinza havia grandes lágrimas cristalinas

Os lagos dos pais os crustáceos das mães eram as feridas

Os joelhos e os braços exibiam as cicatrizes das guerras

Guerras sem vergonhas guerras imateriais impúdicas mágicas

O sexo carnívoro das crianças era belo natural

Sem as tensões do mundo e sem a identidade filosófica

O pensamento voava rebelde como os pássaros e voava voava

Rente ao chão como as pedras leves que serviam de bola

Havia também sempre alguns que sangravam da cabeça e do nariz

Viam-se então grandes pensos andarilhos pelos pátios

Era bom ter a mão da mãe não nem sempre era podia ser terrível

Podia mesmo ser tenebroso quando era sobre o rosto

A mão repentina no rosto fraco a lágrima vergonhosa

Escondida nos cantos da cara era sorvida voltava a casa

Havia a sensação frágil e egoísta o querer tudo o ser tudo

A exploração furtiva e rápida dos objectos dos outros

Os colégios sempre austeros dos adultos respeitáveis entre si

Geravam conspirações inocentes na cabeça dos putos

Quem dá hoje chocolates pastilhas doces incríveis anti-sesta

O sono obrigatório o recreio nunca suficiente

As musicas parvas mas parvas porque belas nas bocas

Mais tarde os cadernos metem formas em vez de pinturas

As canetas universais apoderam-se dos dedos surgem letras

Circuitos intransponíveis na sonoridade dos professores

Ancestrais quase inteligentes cheios de brilho até ao medo

Porque eram monstros com a capacidade grotesca do ensino

A luz lá se ia alterando mas era já necessária precisa difícil

Liam-se as legendas de desenhos animados nas manhãs

Desenhos animados eram um nome geral mas sagrado

Os filmes não existiam eram um grande astro de complexidade

Crime era uma palavra estranha lembrava brincadeira

Os palavrões ainda não tinham a banalidade da raiva

Eram sussurrados dizer foda-se merda picha cona

Era dizer amo-te por isso te ensino o que aprendi

As armas fictícias os tiros gritados ilógicos reais

Furavam as paredes de pedra as árvores largas antigas

Tudo era vivido sem memória os amigos surgiam em torrentes

Os namoricos na distância na não importância dos nomes

Quando surge a primavera a masturbação secreta e os sonhos

A criancice vai-se com o seu cheiro característico

Já se podem ver filmes estrangeiros nos cinemas

Acredita-se na liberdade própria na unicidade espiritual

Torna-se obrigatório tornar lenda mito ídolo possível

Dá-se então a troca cíclica do vento das idades

Um carro dos bombeiros é o fumo de um cigarro aceso

O palco do teatro do mundo cria novas canetas velhos livros

Aparecem sombras e fantasmas da altura do nada da idade lente

Parece que se cria uma paralela vida de mentira anseia-se

Escrevem-se coisas tristes e aleatórias sobre a morte longínqua

A humidade bate nos ossos calcinados as doenças são graves

Iguais a ilusões não permitem brincar aos médicos aos padres

Às mães aos pais os avós começam a ir-se para outra

Descobre-se o mundo terrível não se gosta odeia-se

Começa a incompreensão da vida a inutilidade dos trabalhos

Forjam-se traições a perplexidade criminosa já anda

A vida é agora e para sempre um vulcão raivoso

Um combate por alimento pela fruição do corpo pela liberdade

As armas que se criam para defesa são então usadas

Contra os que as criam os homens acabam esquartejados

As mulheres loucas com os cabelos em fogo

texto 7

Estes são os tempos do carácter homicida, os tempos que escapavam, que pareciam ter tido o seu fim silencioso no meio da vergonha da carne morta e da terra árida. Os tempos… tempos que voltaram a ter lugar no centro do caos, mundo, revoluções, simpatias que se ficaram pela apatia da conformação da boca e do esquecimento do corpo e do sonho. O sonho deu origem ao vício do adormecimento, o corpo envelhece na sua bolha de ilusão e de discurso. As crianças brincam aos gigantes eternos, lutam na inocência guerreira de quem se alimenta dos fracos, mas o que é isso da fraqueza? Que marca interna constrói a mente quando fala dessa fraqueza exterior? Que invenção é essa incapacidade? Qual o interesse em explorar as coisas sem sentido? As coisas ineficazes? De vez em quando não se adormece e pensa-se na insegurança do acordar. Será que podemos viver? Seguir a gramática do mundo e as normas do funcionamento estabelecidas sem nexo verificável, as máscaras da igualdade, da possibilidade, do escape, da confusão… Ah! Grito o meu silêncio e a minha cobardia para atacar a estirpe directa do vírus, eu próprio. Quero afogar-me na felicidade que tento ter mas já não tenho a casa com vista para a cidade que projecto nas minhas noites.

Também quero falar disto. É uma altura de decisões pessoais sem precedentes na vida. Tenho uma janela que abarca mais do que aquilo que consigo percorrer descalço. Olho e tudo é imóvel. O tempo vai faltando. O horizonte fecha as possibilidades de escolha. O fantasma pergunta se me afogo agora e não sei que lhe responda, dedos estranhos na minha garganta, há algo que me aperta de uma forma que desconheço, não são carícias, as unhas espetam, os dentes rasgam, os olhos alimentam-se de uma imagem que se defende e que se mantém para que sobreviva o que não surge. Antros de vampiros que nos dão palmadas nas costas com mãos de pêlo, de veludo sintético, de expressões que são mentiras estudadas com a experiência secreta, a masturbação do poder, a posição intocável do poder, A VERDADE É QUE NÃO SABEM NADA MAIS DO QUE AQUILO QUE SÃO E TUDO O QUE SÃO É UMA MENTIRA FEITA COM TUDO O QUE NÃO SABEM, são bichos das cavernas da história, dos sub mundos.

A lua hoje está enorme, não sei se cheia. Há um silêncio. A música que ouço ocupa a noite, primeiro clássica, um requiem, depois dá-me a energia do tipo chato, rock, antigo, a velha guarda da boa, porque há velha guarda da boa, nós é que estamos entregues a uma bicharada convencida das suas ninharias, insisto em detestar toda a geração revolucionária, que chatos, pastéis, empregos, grotescos. Saiam daqui!!! Vá!!! Parece que querem sugar a juventude para alimentarem as frustrações de nunca terem sido nada, pesados. Todos os monstros sagrados deviam ser de barro, no fundo são, por isso é que se protegem da queda.

texto 8

Tenho esta forma de fixar as coisas negativas: andar nas ruas circulares, meditar diálogos possíveis, desconhecido. Não me cabe na cabeça uma aventura criminosa – aquilo que implica a esperança mínima acelera o meu ritmo cardíaco – prefiro uma criação sem base sólida: o egoísmo. Irrita-me qualquer genialidade, chama o vómito, enfio a cara na sanita e solto a água, infiltro a humidade nos cabelos e na boca. Nunca tive apetência para coisas surpreendentes, tenho um gosto esquisito, aprecio as ninharias em forma humana, a história medíocre. Até já me julguei um portador de uma verdade reveladora, um profeta do mundo cego! Para quê? Que verdade merece ser bandeira? Um dia acordei com um sabor alheio, um corpo desconhecido, tentei ficar sem memória – o profeta mais a profecia tinham partido com uma qualquer mentira. Lavei a cara e as mãos, o corte com a idade.

Hoje faço o que posso para mandar as máscaras para um exílio. Já não aguento ver as belas borboletas, prefiro estudar-me com banalidades. A minha vida de estrangeiro é reveladora de segredos. Não sou um místico (a vontade não apela a nenhuma fantasia ou delírio religioso). Fechei-me para ver. Abro-me sempre na mesma via, um mundo patético, invertido: a palavra que uso possui o frio da sombra e a consciência da incerteza. Adoraria expressar-me só com palavras ordinárias. A acção de hoje é um fracasso de vários pensamentos, o pessimismo foi abafado por uma grande inconsciência. Qualquer confissão objectiva deve ser abolida deste mundo.

texto 9

Com a minha ânsia de soldado

Criei uma guerra no corpo

Interminável

Um combate dialéctico entre mim

E o que a mim se colou com o tempo

Revoltei já a fome e os olhos

Vou subvertendo os pulmões e o cérebro

Por vezes penso pôr um fim como objectivo

Esta minha guerra esta minha revolta

A eternidade dos sentidos

A morte morte morte lutar contra o que está fora

Cá dentro quero estar apenas eu

Nego todo o mundo todas as invasões físicas

Estou pronto para abater as minhas mãos a minha língua

Sei que um dia abandonarei os meus pés gastos

Os meus passos lentos de soldado sem vista

Sem volta

A tortura que obriga a fome a ser fome

A minha cara ficará sem expressão

O meu corpo invisível

texto 10

O medo foi atingido com palavras mal ditas não ficou nada

Todas as testemunhas pisaram o chão líquido e tornaram-se pó

Não se soltar a si é produto macabro de uma vontade ténue

Não dizer negar a convicção da vida por um jogo demasiado infantil

Ou que sei eu da sua cabeça de homem

Na sua voz tremente a falta de verdade origina a verdade

Brincar ao esconde-esconde com o respirar do outro

Não é permitido neste corpo

Porque talvez a sujidade salte para o teu olho

E não vejas mais

É mentira

Brincar ao esconde-esconde com o respirar do outro

Já foi permitido neste corpo

Mas a sujidade saltou para o teu olho

E não me viste nunca mais

texto 11

Imagine-se um corpo sem nome, não um corpo, uma amostra de corpo a acontecer-se, um quase corpo que espera. A viagem que se procura é a viagem do fim, o corpo sabe-o e por isso se recusa a realizar-se, o corpo luta contra o fim e lutar contra o fim é lutar contra o sentido da cabeça. A cabeça conhece o sentido abstracto da espera, ela cria a sua própria história mítica, ela descobre a sua forma ideal, o mundo impede as coisas de serem coisas. O resto é sempre o nada. A figura que nos acorda para o sentido é a figura mortal da mentira a que o mundo se obriga. Anda a faltar algo sem nome que nos faça voar.

Imagine-se o tal corpo. Quase corpo. Frio. Uma espera da revelação eterna, a revelação fantasma que pretende a salvação, a oferta da salvação, a dádiva da luz. Nada se resolve a acontecer. O conhecimento é já antigo e inútil. O conhecimento está já gasto. Mergulhado em fórmulas, em intenções, em construções sobre si mesmo para um falso desenvolvimento que é uma máscara. O corpo relaciona-se directamente com a ilusão, torna-se problemático, só a cabeça resiste ao falhanço universal.

O quase corpo, não um corpo, começa por levantar a mão, tudo bem. A mão da violência e a mão da escrita são duas mãos a mesma, duas mãos desconhecidas no mesmo braço que as ordena. Vários papéis no mesmo chão despido de objectos a que se chama a cabeça, chão por preencher, restos são mágoas e amostras externas de vazios conhecidos como paradisíacos, miasmas sem voz, seres explosivos por dentro e amorfos por fora, acreditam que resultam com a vida que julgam escolher, justificam-se com o destino e com a má sorte, furam revoluções de sentir. Enfim, o corpo que é, que foi, que será ou não será. O corpo conhecido, universal, neutro, ousa levantar a mão dupla e tripla no sentido para, ainda não sabe, se poder segurar, para evitar a sua queda nos abismos da mente perdida de si, desencontrada.

O impossível corpo consegue respirar, aceita a sua formação dispersa e reconhece a capacidade dos seus órgãos. Agarrar as coisas com as mãos é um dos primeiros grandes acontecimentos do corpo nascido. Um acontecimento musical. Depois inventa-se toda a fachada envolvente para justificar a respiração e para garantir o alimento. O corpo subverte-se na origem. Pergunto-me como seria se nunca tivéssemos um nome nem conhecêssemos as palavras, pergunto-me se a crueldade que parece não se desalojar dos nossos ouvidos nos deixaria ao abandono e a uma certa inevitável errância. Desconheço as respostas para os enigmas do mundo, prefiro os enigmas do corpo. Somos máquinas de acção, o caminho é o esquecimento e a cessação, o destino que nos resta é o nada e o pó, tudo parece simples.

O conjunto corpo levanta a mão e o braço e toca na cabeça como que adivinhando a origem do problema. A mão arranca os olhos, o corpo nunca vê. A mão enfia-se na boca e o corpo nunca diz, nunca grita, deixado ao poder do seu silêncio e da solidão, corpo cego sem possibilidade de fuga. Corpo deixado, evasivo, explosivo, mortal. O corpo sente o seu auto fracasso a corromper-lhe as entranhas e reprime a sua condição sem amanhã, o corpo é hoje ou nunca um corpo, o corpo decide esquecer-se de si para se aguentar em pé, cego e em silêncio mas resistente, cego e abandonado, impossível o futuro, mas a respirar, a respirar sem escolha, a sobreviver. Este corpo tem a forma humana da sua vontade. Mergulhado no desespero da consciência da acção.

De vez em quando acontece um estranho assumir dos enganos, a cegueira não se pode curar porque deus não existe e não há regresso ao tempo passado, o grito por gritar fica alojado na carne crua, na carne sanguinária e aí se insiste como cancerígeno, um grito não resolvido pode ser mortal, pode ser suicida, transformar-se em tempestade interna sem retorno, sem liberdade. Podemos, de facto, dizer convictamente que a vida não existe, que a vida é um grito infantil de fome que ficou por dar, por ser gritado. Que a vida é um momento incerto entre a vontade interna de gritar e a força externa de silenciar, que a vida é como a fome, que é como a água, que é como tudo, que é mentira. A vida talvez seja uma mentira que se insiste em provar para que se possa repetir. Uma condenação oblíqua, uma metamorfose que o vazio constrói para que o tempo se vá para a eternidade. Podemos dizer tudo. Podemos até dizer que o sentido que não conhecemos é a verdadeira causa do mal, podemos dizer que não existem causas e podemos dizer que não existe mal. Só o corpo sabe e percebe as existências passageiras da verdade, só o corpo sente a radiação violenta da vida, só o corpo resiste aos embates, a cabeça é demasiado fraca para se insistir como suficiente. Era uma vez… assim começa a minha história física.

Era uma vez um lugar onde não havia nada e onde só o nada podia haver, um corpo resolveu tomar o nada como seu para sentir a força da posse, o nada é uma coisa que não se pode ocupar, o nada pode assumir várias formas para se poder esconder, para poder resistir. O lugar agora ocupado pelo corpo tornou-se doente, o nada morreu em fuga, o corpo resistiu ao tempo.

Escrever palavras é cometer um crime incrivelmente racional, quem escreve tem uma densidade psicopata, exorcismo. A aventura desconcertante da vida em contacto com as folhas e através dos dedos, a mão da violência, tenho uma mão da violência, anda a pesar-me na cabeça mas não arranco os olhos nem enfio a mão na boca, prefiro escrever, prefiro fazer o exercício do esquecimento não livre, obrigar a memória a perder-se na informação nua, obrigar a cabeça a definhar. A minha mão da violência revoltou-se com a castração das coisas e deu um salto para a realidade, a mão existiu com o seu sentido um e deu um salto no rosto alheio quando o julgava intocável, a mão prova, a mão no rosto e no tempo, a mão quase homicida, a mão carrasco a pedir a penitência e a executá-la, a cabeça adormeceu, foi renegada.

Acontecem-me as fugas racionais do costume, sou desconfiado, existe um mundo que se recusa a ser explicitamente verdadeiro e que anda a defender o vazio do sentido porque não existe alma nem futuro nem nada, mundo que mata o tédio e respira aborrecimento, mundo da queda precoce, do conflito, da iconografia comum. Existe quem se apodere das imagens, quero dizer com isto que existe quem se apodere fisicamente das imagens e que só para elas viva. Caminhantes sem tempo e sem propósito, vagabundos do delírio, odeiam soluções que confundem com respostas, vivem da segurança que sempre tiveram e que não podem perder, não, porque ela tem um lado desconhecido que é perigoso, que é maligno, que é mortal, que é desgastante, que é pesado, que se parece com a morte, que é uma forma de compromisso. Compromissos nunca! Insiste o mundo. Insiste na forma da vontade, na forma da falsa piedade, na forma vazia do desencanto. Tenho de pôr o dedo na minha própria ferida para me poder lavar, para me poder perceber, ando a dar em louco com a miséria que me vejo a repetir. A fuga torna-se numa utopia para quem nada sonha, sou um sonhador terrível, quero fugir, nada resiste que mereça resistir. Ando para a frente com cabeça cada vez mais baixa, um dia chegarei ao chão e não me vou poder levantar. O corpo que defendo é um corpo perdido no desespero da forma. Gosto da imagem triste do palhaço, pintado de branco da morte e de preto das lágrimas a rir e a fazer rir da sua ou nossa própria infelicidade, o palhaço é um fenómeno técnico inventado para disfarçar um crime maior, a altura em que o riso faz perder a consciência, o riso traz o esquecimento, o riso carrasco do outro é o riso exorcista do próprio. Acredito que há crime nisto. A crueldade da figura do palhaço, implantada no imaginário infantil, coberto de balões e serpentinas e mundos cor-de-rosa e alegrias e meninos e meninas e anjos e bichinhos e coisinhas bonitas, mentiras, a ilusão a construir-se a si mesma para bem do cenário geral comum. Também eu sou palhaço, enfio-me num palco a pedir o esquecimento e a atenção, agora não pensem em nada, aqui está tudo bem, a morte está fora desta sala, a morte não existe mais, podemos mudar o mundo, nada disto é sério, saem daqui e entregam-se aos primeiros braços que aparecem para se esquecerem realmente que a morte é o que se respira em todo o lado.

Insisto na minha calma aparente, escrevo para dizer que existo, escrevo para me lavar da minha cabeça quando entra em luta com o corpo. O corpo quer desistir, a cabeça mostra a sua força, a cabeça quer viver, a cabeça quer continuar o caminho que não conhece, a cabeça quer fazer sentido, isto é importante para mim. O mundo tem de ser bom, o mundo tem de viver e tem de se insistir de outra forma, isto está a cair, todos vemos, todos sentimos a queda, todos a respiramos, ela faz parte da nossa vida. O dia em que se nasce é o primeiro dia da caminhada fatal, inevitável. Procuram-se coisas belas para preservar, voltar atrás é impossível, continuar com o caminho que se tem quando o caminho não funciona é um pecado contra nós próprios. Acredito que isto é verdade e já sei que a verdade é questionável e que tudo é tudo e que nada é nada e que é impossível não comunicar e outras frases feitas do livro do conhecimento filosófico geral, se déssemos um salto no que já sabemos já estaríamos noutro ponto da escalada e talvez fossemos finalmente humanos.

Lá fora o vento faz barulhos estranhos que lembram atentados microscópicos, preciso da salvação, estou perdido nesta falcatrua mascarada de esquema social e não sei como sobreviver, os bichos do trabalho e do amor, o amor talvez seja uma paisagem mítica numa ilha abandonada, pensa-se que está lá mas não está e depois nada fica ou tudo fica ou mais ou menos fica ou a vergonha fica ou o vazio fica e insiste-se no nada para o conseguir compreender mas a vida foge e chama-se-lhe medo em vez de falta de vontade. Neste mundo tudo tem de ser fácil. Ando farto de lutar. Ando farto de lutar com dificuldades impossíveis de vencer e como não as posso vencer vou fazer o quê? Juntar-me a elas? Não. Tenho de continuar a lutar, tenho de resistir para que um dia seja possível. Tenho de viver a minha humanidade, não posso fugir-lhe. Existe quem diga que não gosta de pessoas, como? Não gostar de pessoas explica muita coisa neste mundo. Há um funcionamento que me irrita constantemente, o corpo chega ao espaço e o espaço não existe, tudo foi mentira, tudo foi em vão, tudo foi tédio, seca, aborrecimento, insatisfação. Os espaços podem ter destes sentimentos desde que sejam espaços pessoas, o corpo no espaço ocupa o espaço do corpo, uma descoberta brilhante, estou contente com o ponto a que chego com a escrita. O corpo no espaço ocupa o espaço do corpo. Isto é quase uma revelação inútil. Já me deixo levar pelo momento, ouço música, danço absurdamente para me manter acordado, não quero sonhar, não quero dormir, não quero fazer nada que seja obrigatório, quero quebrar todas as regras da minha banalidade para poder ser feliz.

De vez em quando vou na rua e olho para as pessoas para tentar compreender-me, estamos todos despidos aos olhos dos outros, somos todos feitos do mesmo. A mesma carne crua vestida de nada, o sangue que corre entre os homens. Tenho de me manter calmo. Vou para a rua respirar o ar solto, as pessoas passam, são leves, transformam-se em ares apáticos de mudança impossível. Torna-se necessário continuar a desenvolver a forma do desgaste, tenho de ir ao fundo. Descendente da tradição do fogo mental, o fogo grita com as suas chamas, queima os cabelos biográficos, transforma a cabeça, tudo se chama atentado. O ritmo problemático da acção, o nada, estar cego e ao mesmo tempo invisível. Nenhuma imagem que acorde o sentido.

Um dia fiz o pior de sempre porque perdi a esperança, o corpo animal ganhou o controlo da cabeça, o corpo da sobrevivência despido de escolhas e com o nome da acção: violência. As coisas sem nexo. A alienação infantil que provocou o medo. Medo? Eu era então um mero desconhecido das viagens, deram-me com o fracasso, obrigaram-me a engolir a tinta da escrita. Pois então, tudo o que escrevi nos meus tempos de trevas está gasto e não serve para nada. Escrevi as cartas que nunca foram respondidas, escrevi a salvação da vida alheia e minha, não vou voltar a escrever a nenhuma entidade pessoa. O mundo não se assume como justo. Fui atirado à carnificina para ter de me desenrascar, a selva do quem puder que se salve antes que seja tarde e a envolvência traz um nome. É preciso fazer tudo antes que seja tarde. O poder do tempo a assustar a cabeça leve. O mundo repete-se no pior de si, o mundo contém a especulação da felicidade e nunca a felicidade compacta. Ando atrás de justificações que não existem e não querem ser expostas a uma possível verdade irrefutável, uma possibilidade. Estar perdido é só isto. Tentar perceber o rumo das coisas que não são já nossas, coisas alheias, coisas que ganham vontade, desconectadas, problemáticas na sua própria origem.

Apaguei na minha cabeça tudo o que me resolvi a escrever, foi o fim de um ciclo de sentido que se perdeu, o seu desaparecimento trouxe um vazio na minha história pessoal. Detesto rupturas sem caminho possível. Fico deprimido com a falcatrua dos seres que foram de ouro, deitam tudo ao ar, ao chão. Todas as minhas cartas foram lixo, espero que ardam com combustão espontânea, que os meus cabelos ardam com elas e que não cresçam nunca mais.

O amor é uma fraude inventada para ocupar um lugar não ocupado por nada, medida de precaução contra o outro, o poder do outro em nós, a força que se atinge com a queda faz pensar se vale a pena. Claro que não vale a pena, claro que nada vale a pena, ou tudo vale a pena se a alma não existe. Cedo à minha tentação de falar nisto. A mulher bicho na cabeça faz explodir os ossos que guardam o cérebro. Anda-se em círculos pelo nada, aquilo de andar nas ruas de gente estranha para poder ver se é tudo igual, a conclusão é nula, todos, mal ou bem, são infelizes, pudera com estas condições que o mundo tem para oferecer, as pessoas minimamente conscientes não podem ser felizes, não conseguem, a envolvência é mais forte do que o interior, a envolvência puxa para fora tudo o que se guarda por dentro do corpo, a envolvência é um segredo bem guardado e ninguém assume que o sente, a vergonha do social, a alienação de vítimas na fogueira do mundo humano, que bonito que é viver, não é? Viver. Andar. Lutar. Amar. Essas futilidades do espírito que nos vêm atormentar porque a gente precisa, o homem tem de ser atormentado e a vida é difícil, é a regra universal do caminho inseguro, a vida é difícil, conformem-se com a imensidão de toda a angústia, nada serve para a vida intocavelmente parva, para a infeliz incoerência dos sítios em que se consegue andar.

Sinto-me ferozmente eléctrico. Eléctrico porque habito um enigma do qual não há regresso. Preciso de saber se a conjugação das limitações das coisas se pode confundir com uma certa verdade que tem o estranho poder de mudar tudo. Preciso de saber. Por vezes torno-me num eremita do momento e fujo para dentro, preciso de saber, como seria se tudo mudasse? Como seria se uma união de forças físicas de densidade descomunal se resolvesse a mudar tudo? A descoberta limite de uma felicidade sem enganos, revoluções utópicas de repente possíveis, rasgos de alucinação, respostas, o mundo ao contrário portanto perfeito. Pensar nisto é inútil como matar a sede, tenho de encontrar a porta letal por onde se foge da intensidade. Ando a detestar o corpo, quero dizer que ando a detestar o corpo de uma maneira leve mas acesa, tempestuosa mas com fragilidade. É que tenho uma estrutura canina que se apoderou de mim como um fantasma dos que eu odeio, um fantasma do acaso.

Faço uma pausa na minha identificação para explicar que sou de fora de tudo e por isso me confino ao meu lugar de espectro, nas cidades grandes poderia ser confundido com um insecto de segundos. Faço uma pausa para me ver deste ponto analítico e sem estrutura segura, o nada é uma realidade sem esperança. Ando a fechar portas que nunca deveria ter aberto, portas intocáveis, portas de perigo, proibidas, maquinais, portas em que o passo a seguir é o abismo, portas que incluem a mão que nos empurra para tudo ser mais rápido, fulcral, exacto, da porta para a morte, nada mais a dizer, tudo é indiferente aos sentidos da vontade. Até nunca e outras breves e sinceras despedidas imaginadas em silêncio. Mundo sem pudor. Idade homicida.

Um dia enfiei-me num barco a saber a químico para me obrigar a acordar, acordar pode ser muitas vezes adormecer, irresponsabilidade minha, disseram que tinha duas fases, que tinha menos que a lua, não gostei, comecei à procura das outras fases que queria ter ou apenas provar que tinha ou nem isso, as fases desconhecidas embalaram-me noutros barcos e levaram-me para outras imagens, nenhum sabor químico voltou a funcionar apesar de todas as sucessões de frascos, nada disto interessa aos olhos dos outros e faço disto segredo absoluto, hoje digo tudo: eu sou cego, surdo e mudo. Nada disto cai a meu favor na conjuntura actual que nos pretende obrigar a agir, eu como cego, surdo e mudo, pretendo votar na lei criminosa do explosivo, ser contra tudo e todos e ter a certeza de estar redondamente equivocado. Demasiado tarde.

A espiral nascida do umbigo já circula a acompanhar a idade, já altera a fome e o sono, já se procura. Acho que ando a copiar palavras lidas em livros escritos noutras épocas, sou um estudante do mundo e tenho a capacidade de nada saber, nem gosto do domínio, sou dos da abstracção, parto da vida para chegar ao lugar em que tudo flúi e nada se imagina, convido-me a uma viagem de resistência sem contornos esquizoides de limite e saturação. Preciso de não parar por aqui, andar em frente na aventura vida sem olhar para trás. Tenho as palavras que uso sempre e só com elas me lanço na escrita, não sei mais do que isto, a juventude não deixa a aventura ir longe, não sabe reagir. Escrevo o que quero e o que sei, pego no acontecimento sempre e escrevo-o, torno-o registo de passagem, lanço-o para a terra infinita, escrevo gritos, está visto. É tempo.

Dias há em que adormeço nos lugares habitados por figuras carnívoras e penso que tudo é pesadelo, esqueço-me que tenho um olho aberto enquanto durmo. Vêm objectos e pessoas contra o meu corpo adormecido e pedem-me que respire em paz, um pedido parecido com o pedido dos mortos, acusam-me de desgostar de estar morto, claro, quem é que gosta de estar morto no meio dos abutres que nos comem ainda vivos e quando não esperamos? Quem é que quer ser comido por rastos de humanidade? Também admito que ando estranho, as coisas andam a recusar-se a correr bem, as coisas tomam o seu rumo fatal de coisas, é mesmo assim, life goes on, sad but true, you are nothing thinking you are something. As verdades que se escondem nas palavras banais tocam-me por dentro sem eu querer, vivo dos lugares comuns, isto um dia passa, isto há-de ir-se embora para um lugar de esquecimento. Resolvo-me a sair de casa sem rumo em vista, construo castelos de areia que não resistem ao vento, claro que estou fraco, ando a tremer das mãos, os sítios públicos dão-me a volta ao metabolismo do corpo interno, nota-se por fora, enfim. Tenho de ter força, ando a insistir, tenho de conseguir saltar deste sistema medíocre, da terrinha vazia com sorrisos de falsidade e de vergonha. Fugas.

É a revelação que se procura em todos os lados e ninguém é paciente para a esperar, são os vícios do mundo, a capitalização das relações demonstra este lado visceral da tentativa, a recusa do trabalho e da dificuldade, se for imediato que venha, eu também sinto esta ansiedade brutal a comer-me por dentro, a pulsação adversa do corpo respira demasiado veloz, a ansiedade aumenta em certos lugares e em certas situações, nada fica para resto, tudo é passageiro.

Ando a desfazer o ego, importante, talvez um dia me reconheça como parte integrante de um sistema que também passa por mim, desfazer o ego é resolver o sentido humano que tenho em mim, é descobrir um lado interior da verdade. O mundo também desfaz o seu ego generalista mas recusa-se a ir ao fundo, para quê descobrir alguma coisa de importante se o futuro é uma mentira e se o presente é já uma queda. A resposta: por uma questão de princípios e de consolo e de verdade e de humanidade. O único tema digno de ser reflectido é a humanidade, o mundo. Este é que é o problema central da vida, esta é que é a resposta final ao chamamento suicida, qual é o ponto mais baixo a que o homem consegue chegar? Qual o limite? Se deus não existe que se invoque o seu sangue criminal e que isso nos traga descanso. O corpo precisa de descanso, a vida precisa de descanso, o ritmo é uma alucinação da vontade, maquinal, frenético, sobre a corda da sobrevivência, sobre a corda do pseudo fim, sobre o abismo do vazio alheio.

E se tudo fosse diferente? A tal pergunta. Isto não sou eu! A tal facilidade com que o homem se desculpa, não, eu sou culpado de todos os meus erros e enganos e falcatruas e verdades e coisas más e coisas boas e tudo o que fiz seja o que for. Eu tenho a culpa escrita na cabeça e ela não me larga, não me deixa respirar, empurra-me para fora mas eu não consigo sair, estou fraco da mortalidade das coisas efémeras, como se a imortalidade fosse um mito, como se a eternidade fosse um mito. Hoje tudo tem de ter um carácter de urgência para se justificar, o tempo assumiu esse lugar do poder e a vida passiva obrigou-se a aceitar a sua inevitabilidade. Não quero. Detesto o peso que o tempo não tem. Detesto a vontade. O tempo do caos caminha ao nosso lado e não em nós, etc… insisto-me para me poder manter seguro. Estou à espera da derradeira queda. O olhar que se rebenta a si mesmo como uma convulsão. Estou a falar de lágrimas, a capacidade absurda dos lugares, ando a ter força, ou seja, incrivelmente, ainda não caí. Ainda tenho força para viver de uma maneira absurda. Não caí. Importante. Tenho uma esperança quase mítica. Uma esperança que combate a falsa brutalidade dos acontecimentos. Vazio. Eu.

Ando a escrever-me quase insistentemente em todos os lugares, nem o nada assusta a cabeça despida. Estou cansado. A falcatrua alheia assume o seu papel criminoso, tudo me atinge, as mãos temem do seu próprio fracasso. Invento vozes. Pior – invento palavras para vozes. Quase me detesto imaginar na estrutura. Isto é uma má viagem. Nada me atinge tanto como o ritmo. Dançar. Dançar. Saltar até ao abismo limite das coisas ligadas. Previamente desligadas. Insuportáveis. A sua imagem na minha vida assume uma proporção monstruosa, vivi assim durante o tempo sem importância, infelizmente imaginei-o verdadeiro. Bato com a cabeça no chão com o exagero de uma brutalidade que ajudei a construir. Estou à espera de uma quase realidade paralela que me separe da verdade e me ajude ao esquecimento. Nada me grita que me levante deste estado dos enigmas. Todos os seres são figuras enigmáticas aos olhos dos outros. Estou vivo, nada mais que me assuste. Estou vivo e com os olhos colados num papel que nada pode fazer. Escrever é um acto físico. A cabeça nua limita-se ao apelo do nada que procura. Escrever tudo não muda nada, a escrita parece nula para o mundo, nada, nada, nada, nada que se levante para o futuro como um eco de um grito que perdura na monstruosidade do tempo. Tenho medo do ouvido. A cabeça nua, mostra a sua verdade escrita e só ela a consegue agarrar. Todo o mundo é desconhecido de um possível resto. Olho. Não. Recuso este contentamento infeliz, este fraco consolo do nada. Tudo me assusta. O nada anda a invadir a cabeça sem brilho. Ainda não caí. O consolo está longe de se vingar. O cadáver da acção. A realidade de dentro a arranhar-se, a pisar-se para reagir, a esquecer-se de si. Ando a evitar o ego, a desprendê-lo, tudo passa pelo esquecimento absurdo do ego, o ego deve ser a zona suicida do espírito, o ego deve morrer para que a suposta verdade viva. Ando a acreditar em coisas estranhas depois das acções homicidas. Pensamento religioso. Eremita dos caminhos solitários e da música e de alguns livros mágicos. Ando a pensar a minha morte como um bloco de notas, apontamentos específicos de metodologias e consequências exactas, resoluções, técnicas suicidas, fantasmas de dentro, venenos, armas perfeitas, desenhos do corpo contra o chão, a derradeira queda universal, a aldrabada inconsequente dos lugares do outro, a pseudo transparência das coisas opacas e mal pintadas. Quem sou eu no meio disto? Um mero bicho que se atafulha de intensidades diversas para morrer cedo ou tarde ou nunca. Um insecto sem ciência objectiva. Quero mudar de assunto para voltar à abstracção da verdade crua.

Desculpem a minha existência reles de fracassado, condenado ao não funcionamento, tudo me falha, as coisas parecem enfeitiçadas e eu não acredito em feitiçarias nem em espíritos nem em nada, não acredito em nada, este é o meu niilismo do acaso e da acção, quero e sinto que tenho de chegar ao meu fim para poder existir nulo, a minha vida é uma queda, apercebi-me disso muito cedo quando troquei jogos de formação por jogos de solidão, quarto fechado, a casa alheia a própria, livros de ficções, teatrinhos mentais, estupefacção, alienação, morte à vista. Era apenas uma pessoa quando vieram com as ideias das máscaras e das palavras, com a escola da vida e da violência interna. A criança que não fui, as guerras absurdas dos adultos e as psicoses sem sentido das famílias em crises sucessivas sem qualquer explicação, não pude escolher o presente que tive, não importa, agora é tarde, não tive direito a paz, foi uma paz armada, fui ficando por dentro, solitário, sem palavras para o ouvido alheio, desenvolvi as minhas máscaras, desenvolvi tudo o que não devia, parece que tenho peso, parece que não evita a fuga de mim, o peso, este peso que me consegue alterar o rumo e o ritmo das coisas, este peso que me destrói a capacidade humana de ser simples como as coisas, quero o quê? Quero a evasão, nada se realiza, nada me visita de uma forma completa. Obrigado a viver com os monstros do mundo, a imagem do vagabundo errante não me solta a cabeça acordada.

texto 12

São as ruínas de uma cidade estrangeira aos olhos do mundo depois de uma queda, habitantes insectos em busca de uma sobrevivência de mentira, de uma revolução no viver. É uma amostra de uma fraude sem precedentes, os corpos estão demasiado magros para poderem andar, os corpos arrastam-se pelo chão, ganham feridas profundas muito perto dos ossos, demasiado profundas, demasiado perto. Existem seres que são mais fortes do que outros, são os que assumirão o sentido da praga, da propagação da espécie. Existem crianças sem memória, sem qualquer elo com o passado, sem qualquer glória, título, família, sustentação, crianças previamente mortas, crianças dependentes da vontade alheia, da vontade que não se vê, que talvez não exista. Os corpos dos mortos mortos estão já desfeitos, servem de comida para os cães e de adubo para as plantas de amanhã, não há quem os enterre. O novo mundo é um fervilhar de doenças e de contágios inconscientes, ainda não houve tempo, a convulsão foi recente e ainda não tem explicações, talvez não tenha nunca, talvez tenha sido a primeira de uma convulsão maior, como uma tosse, como um ataque de um vírus desconhecido que se apodera do corpo e lhe tira todas as noções, que lhe rouba a salvação. Este novo mundo está já gasto e desconhece a profundidade, o objectivo máximo é a sobrevivência, é o homem animal, é o estado puro da verdade, é o estado neutro do vazio depois da linguagem e do pensamento. O homem resto vive de novo com a imagem na cabeça, o seu conhecimento é a necessidade. Os homens velhos não sobreviveram ao colapso, as mulheres quase não existem, todo o futuro está comprometido, a violência acontece, a violência ocupa o seu lugar de sempre mas mais perto da crueldade natural, outros chamar-lhe-iam selecção, outros animalidade, outros nada. O futuro depende das escolhas e da capacidade de criação, o mundo não conhece as suas alternativas, está perdido, não tem rumo, não tem deus, os homens andam à deriva, em busca de consolo. É assim que surgem os primeiros gritos da verdadeira fome, da fome de dentro, da fome física, da fome sem a satisfação imediata de outros tempos. O mundo andava acomodado ao seu próprio silêncio, girava eternamente no mesmo sentido perverso, repetia-se, abusava de si e do que considerava como ganho ou inevitável. O mundo que vivia no mundo era resplandecente apenas para si mesmo, nada mais importava, o cuidado era impossível. O ser humano dependia do seu próprio fracasso para triunfar. Mundo de angústias e de desolação, inconsciente, sem o sentido de crime, de liberdade, de libertação. Houve revoltas silenciadas, vão haver sempre, até agora que tudo se foi vão existir fracos e fortes, vão haver uniões de sangue e de princípios, de feitos marcantes e de glórias inúteis, o bicho só muda nas condições, a perspectiva parece ser eterna, faz parte. Existe algures um homem no meio das pedras que grita por socorro, não importa. Existe algures uma criança que grita por alimento, não precisa. Existe algures uma mulher que pede ajuda, que está presa, que não tem rosto, que está quase morta, o homem vem e agarra-a e abusa-a e atinge-se a si mesmo com a mesma desgraça carnal que se apoderou do mundo antigo, a mulher indefesa é um objecto sem alma. É preciso odiar o ser que vive no fundo para o expulsar, é necessária a coragem para o descobrir, para o enfrentar, para o aniquilar. Houve homens e mulheres que bateram fundo e previram o caos, silenciados por um nada que os tornou não importantes. O novo mundo é o colapso do velho, é a ruína de uma espécie sem qualquer trono, sem qualquer salvação. Condenados a viverem da sua própria miséria, vão caminhando errantes em busca de um nada maior, de um rasgo de felicidade. A esperança dá-lhes força para um caminho desligado da realidade, ainda não sabem que não existe nada, que tudo foi, que a desintegração da abundância aconteceu de facto, que um qualquer momento no universo resolveu matá-los, resolveu tirar-lhes o sentido que nunca tiveram e que sempre procuraram com a sua ambição de dejectos e de poder. Nenhum deus lhes diz que não existe nada. Eles insistem no percurso solitário, acreditam que se encontrarem a felicidade momentânea ela lhes trará a resolução, que se encontrarem uma amostra de felicidade semelhante à de outrora poderão ser líderes do mundo novo, espíritos superiores. Não sabem também que o espírito não existe depois da queda, só existe carne, que vão acabar por se comerem uns aos outros quando virem a verdade, não existe nada, não existem possibilidades, armas, água, alimento, não existe nada que se possa açambarcar, nem sequer existe a própria realidade. O novo mundo destruído é um fantasma do velho mundo da glória vã, do velho mundo do massacre de uns e do engordar de outros, o velho mundo foi o construtor inconsciente do novo, só por isso o novo é assim, vazio e irracional. O homem inventava palavras para protecção, agora está totalmente despido, exposto a tudo, exposto à erosão. No meio das ruínas o som é de um vazio denso que se infiltra nos ouvidos e que se chama medo, o silêncio sente-se a entrar nas coisas, o silêncio sai das pedras e da terra e dos mortos, o silêncio do terror. O terror de antes era uma fraude quando comparado com este, este terror terror, esta imensidão de morte e de abstracção, antes o terror era uma desculpa sem sentido para um fim absurdo, já o homem ia no último estádio antes da sua queda. Imagine-se um planeta a perder o sentido da órbita, da atracção à sua estrela-mãe, do seu sentido no universo, imagine-se um planeta a cair, a perder-se eternamente no vácuo, a despenhar-se eternamente no fim, no vazio sem fim, a girar com a força centrífuga com uma velocidade inimaginável, um planeta a gritar, um planeta suicida, um planeta como um anjo caído. As rupturas dão-se no interior como uma convulsão de sangue e líquidos orgânicos, nada sobrevive. Num mundo em que os homens caminham para o nada e para o desgaste, o nada parece ser o sentido e o desgaste a finalidade, nada importa para as cabeças que dormem nelas mesmas, tudo contém tudo. O sentido é o presente e o futuro, o passado já lá foi, o passado não volta, está morto. Falta música que nos embale.

texto 13

É esta estranha maldição que se apega à pele e que fractura os lugares da vida e o desenrolar do tempo. É este ser ininterrupto, esta ambiguidade já nascida, despojada de linha ou de significado ou de vontade. Andar como um sobrevivente de um colapso interno, um colapso que acompanha o corpo desde um início plausível, um colapso que acrescentou o nome à espécie e ao género e ao tempo fixo da procura de uma verdade que se justifique. O vazio de querer anular os sentidos do próprio absurdo de dentro. Os sentidos quando vêm ao de cima raspam a carne com as suas garras de consciência alargada ou previamente morta, consciência despida de nexo, de linha, de voz, de lágrimas. Tudo abandonado em ventos de idades macabras, tudo abandonado, morto de fome e morto de vazio, sempre consciente do nada em si. Do nada insípido e atroz que se insiste como um grito de ouro, como um grito de revolta contra uma não identificação, contra um desejo superior de existir, de ser, de acontecer, de significar. Ouvem-se as vozes esquizoides por cima dos ombros ao andar nas ruas de ninguém da cidade deserta, quase abençoada, a cidade que se apresenta como uma falcatrua desconhecida, a cidade de desamores, de reprimendas infantis sem nexo e sem maldade. As vozes que se chamam a si mesmas para darem lugar ao outro, a velocidade do mundo, a velocidade de uma queda permanente numa linguagem que é preciso definir para que surja sem mácula e sem deus, sem noções espalhafatosas de crimes por acontecer, de fantasmas de carne e de perdão, sem os combates do fracasso prévio. São delírios sem coloração e sem batimentos cardíacos. As mãos descobrem-se na sua própria alucinação, o tempo salta como um fragmento em que o tempo se torna secundário, nada se diz que impeça os abismos da saturação e da ruptura. É um estar perdido em noções falsas, básicas, desumanas. Desnoções. O cuidado esquecido na ausência das cidades e na alienação metafísica dos transportes, o cuidado e o abandono, a relação escondida vê a sua luz fugir por entre os dedos de osso, o corpo fica sentado numa atitude contemplativa, ressequido no absurdo da existência. São os monstros. São os gritos das vozes. É o desconhecido das miragens. É o fim. É o fim sem máscaras e sem revoluções. É o fim das guerras e da memória. É o fim ridiculamente utópico de nenhuma salvação, de nenhum poder, de nenhuma trégua. A paz armada já não tem lugar no corpo e ele sabe-o, ele consegue ressentir o seu estado embrionário mas final, ele assume o seu carácter larvar sem metamorfose possível, sem desenvolvimento. Fala-se de esperança quando a esperança morre sufocada aos pés de soldados que falam do amor que sentem pelos coitados já feridos mortalmente e isto já não é metáfora. E isto já não é simplesmente desolação nem incapacidade, é o rumo do tempo, é o triste sentido do outro que olha mas não diz, que não olha, que se incapacita de se olhar no outro, que não se vê no outro a si. O espelho do mundo. Os olhos que se abrem para que o mundo entre, para que um eu escondido na garganta possa sair e que possa sair sem medo, sem muros, sem guerras internas que se tornam explosivas quando percebem que afinal não passam de ilusão. É este o verdadeiro tempo dos assassinos sem ética, que conhecem todas as formas de morte e todas as armas. É este o tempo a que se chama de fim, de interior. É a carcaça das histórias e de certos fantasmas invisíveis que pairam sobre os grandes crânios que desconheceram grandes épocas, que se desconheceram a si mesmos para que pudessem simplesmente sobreviver e assim cumprirem com o seu destino de carne e atrocidade, com o seu maravilhoso destino glorificado de homens baços, leves, quase perfeitos, o seu destino de sonho, o seu destino sem regresso. E assiste-se ao espectáculo da decomposição, a decomposição em tempo real, contornos indefinidos, mortes eléctricas, mortes infinitas sem necessidade e sem precisão. Dizem que é uma questão de vontade, dizem-me que é uma questão de cuidado, gritam-me com o silêncio mais ruidoso de sempre, um silêncio mortal, um silêncio arma, atafulha-se na garganta e no estômago, revolve-se, ejacula-se, dorme. As vozes falam num tal de renascimento e numa tal de sobrevivência, a vozes falam constantemente sem se aperceberem do seu fim. A respiração afinal é a única coisa que se insiste.

texto 14

Existe portanto um local imaginário em que respiras, em que sou sombra e não presente, em que durmo. Gostava de me tornar réptil, de andar em busca de insectos que não me dessem nunca alimento, o corpo nunca saciado de vida e sempre intermitente, em caminho sem tempo. Só pedia o fim do vazio, desta ausência de sentir, pedia a luz do mundo, a imagem nítida de uma base sem contacto com os restos de coágulo da memória. Desconheço a chamada glória das acções imediatas, não me parece que os círculos da carne obedeçam a tais regras da matemática e do acaso, tornado deus ou uma verdade. Sou um bicho enfiado num casulo por proteger, não faço promessa alguma de melhores dias ou noites, nem sei se me conheço por dentro como me desconheço por fora, parti os espelhos que os olhos criaram com as mágoas, com tanto desprezo que me mandaram quando estive em guerra comigo mesmo, soldado dentro de mim, aparentemente frágil e convexo, sem retorno, sem saídas. Ando em cordas que abalam as coisas, cabelos desconhecidos, sem vozes palpáveis e sem corpo fixo para se apagarem com o grito que o eu bicho lança para a terra infinita. Não tenho sido um grande homem, nem sei se tenho sido homem, pois de noite tenho acordado com a baba dos pesadelos da consciência, com as descargas mais brutais dos líquidos da cabeça. Insecto. Costumo ver-me nessa figura inanimada dos livros da biologia. Insecto e transparente. A mentira deverá ser um crime quando formos perfeitos, a maldição da espécie que fala e que pensa que pensa. Infantilidade. Salvação. Este vazio que se sente no fundo de nós e se recusa a desistir porque não tem um alvo de combate ou de amor. Noite após noite tenho-te sentido distante, mas tenho-te sentido. Criminoso. Tenho roubado imagens à memória da vida e com isso me tenho mantido acordado, como num sonho. Escrevo barbaridades sobre a vida que não possuímos, sobre a vida que não temos, sobre os nossos pés descalços, em atitude quase religiosa, sem olhares para fora de nós. Caminhante dos sentidos sem forma, por aqui tenho olhado para o que sou e para o que não somos, quando me mandas embora quando estou a dormir com os dois olhos abertos e sem cansaço. É verdade, tenho fugido a muita da porcaria que me têm obrigado a comer, tenho-me enganado. Odeio a minha tanga. De um lado sinto o meu esqueleto demasiado apertado para aquilo que me ocupa, a minha capacidade volumétrica não consegue abarcar nenhuma área de nenhuma acção concretizável, sou um risco. Isco de nenhum nada. Salto de casa como quem apanha chuva nas províncias do corpo aéreo. Já pensei nas formas ideais de morte, estou sempre solitário nas minhas imagens mentais, caquético e encarquilhado, com o cérebro de quem sou no limite do desvairado. Invento estas comédias sem nexo para me inventar a mim, para ter a certeza do que não escolho por que não posso e não existe quem pergunte se quero. Os fogos da alma, quando o espírito se agita numa imensidão de tempos adversos, incendeiam a cabeça sanguinária. Escrevem-se coisas oblíquas que nos atravessam muito e não nos tocam nunca. Existe medo em mim, eu sei que ele existe; de noite espreito pela fechadura dos sonhos e chego a esta merda de silêncio, dos ouvidos carregados de vácuo, dos membros numa ferrugem aquaticamente solitária. Tenho uma toca de barro pintada com cores infantis e amostras de líquidos orgânicos, não ouço nenhuma voz quando me fecho lá dentro, não consigo alucinar nenhuma falcatrua, criminoso porquê? Porque se acredita ainda que cá dentro que o mundo irá girar contra o sentido dos ponteiros do relógio da memória das coisas. Medo. Esta vida de mediocridade que temos de aguentar para respirar em paz. Hoje tenho estas coisas para dizer, o sentido apático não larga o meu apêndice intragável, respiro porque o meu corpo a isso me obriga. Invento armas porque o meu carrasco me compra a minha vida. Isto. Consumo. Alienação precoce. Preço. Mão incandescente na cabeça da mulher, o homem pulverizado em fragmentos de metáforas filosóficas. Aguentar a impaciência do limite. Nunca parece ser permitido a uma vítima que sinta a pressa. Mas tens razão, escolho muitas vezes caminhos totalmente errados, a imagem ambígua das minhas conexões sem nexo, com a envergadura do tudo, dessa mentira sem rasgo, no reino vegetativo em que nos encontro. Peço apenas um silêncio incomodativo ou um gesto de loucura, um ponto em que se anule toda a linguagem, e o espaço e o tempo deixem de ser barreiras sem visibilidade, e sem as traições do porque sim estampadas no rosto pintado de medo e de vergonha.



texto 15

E é um tempo de fascínio e um tempo de paz. São as vozes resolutas. É o início do mundo. É um tudo, meu amor, é um tudo. É um tudo sem regresso conhecido. É um corpo que voa no seu sonho aéreo. E nada mais importa para o tempo que se sente. E nada mais importa para o momento em que se vive. Nada mais. Existe um sentido que atravessa o teu rosto iluminado na noite, é a boca a beber o teu rosto iluminado, a boca que pede o alimento eterno. Sim, insisto em amar-te sem qualquer limite, insisto no fim das prisões mentais que afligem o mundo, insisto em amar-te pura, perfeita, porque és luz, luz e silêncio. Amo secretamente o teu silêncio musical. Durmo com ele todas as noites de frio e a solidão não me visita. E já agora, também sei que há monstros que habitam no meu olhar, monstros invisíveis, fantasmas infantis. Sabes o que lhes digo? Que tenho um anjo que me salva do lado escuro das coisas, com as suas asas gigantes de papel, feitas com as suas próprias mãos, presas aos seus ombros e sobre as suas costas. É assim que te vejo, meu amor, imagina o segundo primeiro do universo com toda a sua intensidade condensada num só ponto, mágico e absoluto, tantas vezes irreal ou impossível de compreender. Porque tu és o instante em que a vida começa e acaba. Porque tu és o instante em que a vida se resolve. Porque tu és. Porque eu sou. Porque nós somos. E eu quero dar-te flores e palavras flores e lágrimas flores e risos flores e momentos flores e sinto-me uma criança que grita o seu amor inocente pelos cantos do mundo como se fosse uma bandeira. Amo-te. Mais. Amo-te. Ainda mais. Amo-te. E amo-te. E volto a amar-te. E amo-te outra vez. Todas. Sempre.

texto 16

Fomos entrando nas casas do outro. Quebrando as paredes que os problemas da memória tecem quando atacam o pensamento. Fomos entrando. Assim a construir um presente real sem a pequenez das coisas. Talvez lutando contra os sentidos alheios, os mártires da vontade gritada, do grito surdo, mudo, seco. Entrar nas casas é acreditar na visita, é prometer o regresso. O medo é sempre o de caminhar. Ou o medo é sempre um caminho. Caminhar é responder. Fomos andando em espirais. Fomos andando para a frente enquanto voávamos no mundo, secretamente, a saltar. Não tenho vergonha de dizer que nos admiro. Não me custa dizer que nos amo. Que nos canto. A tua luz. Quando bate nas pedras e revela a sombra do tempo. Insinua-se absoluta na minha realidade visível. Estou aqui. Triste na minha solidão já normal. A pensar em ti. Na tua imensidão. A querer que fiques. A querer ficar. Tenho os ombros com sono e a barriga apertada. Estar contigo. Estar em ti. Estares tu em mim. Estarmos. Respirar e viver. E andar. E viver mais. E sentir-te. E sentir-te outra vez. E mais uma vez voltar a sentir. Só a sentir. Amar-te simples. Quase infantil. Quase a brincar. Nas tuas mãos há um país de esperança. Soltam-se os gatos ao som de música. Os gatos riem-se nas tuas mãos. Sobem por ti acima até te chegarem à boca. Para te beijarem eternamente.

texto 17

Sento-me e espero. É tudo uma questão de silêncios. Não procuro nada dentro de mim. Talvez não defenda nada. Espero. É a minha acção continuada. Recuso a visita de qualquer pensamento. É uma espécie de nudez. Uma forma interna de esquecimento. Vou para a rua. Ando. É uma imagem fantasma. O dentro é diferente. Sentado e à espera. Os pés marcam a hipnose. A cabeça de hoje consegue assumir o seu vazio. Cabeça janela. Cabeça à janela. Tudo passa. Vai-se com o desenrolar do mundo. O mundo desenrola-se enquanto eu espero. Eu vejo o mundo desenrolar-se com a minha cabeça despida. Silêncios. Tudo são silêncios por preencher. Silêncios para agarrar. Espero o quê? A resolução do segredo. Uma revelação. Um desenrolar de mim no mundo. Para o mundo. Do mundo. Do mundo. Reforçar para chegar ao silêncio. Reforçar-me para chegar à convicção de que vale a pena esperar porque nada mais importa para além do segredo. E depois do segredo revelado nada mais importa do que a sua resolução. As coisas tornarem-se finalmente coisas. Gritar no meio do silêncio para poder quebrá-lo. Gritá-lo convictamente. Certeiro. Mortal. Sair de mim porque o dentro já não é suficiente. Beijar o mundo. Beijar o segredo. Torná-lo na forma de amor mais pura. Fazer do segredo uma forma superior de luz. Agora é tempo. Já é tempo. Sento-me e espero o meu levantar. Vou para a rua e o andar deixa de ser uma imagem fantasma. O andar passa a ser a forma mais real de respirar. Sente-se o amor de uma forma quase louca. O corpo acende-se com o movimento do mundo. O mundo tem um nome que me visita enquanto durmo. Sonho constante. Não quero acordar. Talvez a minha espera tenha esse ar sonolento porque não quero acordar nunca mais do meu sonho. O sonho nomeado tantas vezes na cabeça despida e esquecida de si mesma para ter mais espaço para o nome. Nada mais. Nada mais. Nada mais importa para a cabeça. O nome aproxima-se. Agarra na minha mão. Eu estou sentado à sua espera. Antes não sabia da existência do nome. Agora não. Agora peço que o nome me agarre na mão e me leve e me embale no meio da vida. Peço que o nome seja verdade. Peço que o nome me leve no seu voo distante. Que me leve consigo até não haver regresso. Que o nome se torne eu e eu me torne no nome. Que o nome me ame como eu o amo. Que o nome me queira como eu o quero. Que o nome me sinta mágico como eu o sinto mágico. Perfeito. Tudo. Toda. Incrível. Só quero que me ames. Muito. Como eu a ti.