Pedro Fiuza nasceu em mil novecentos e oitenta. Ainda é cedo para qualquer nota biográfica.

texto 13

É esta estranha maldição que se apega à pele e que fractura os lugares da vida e o desenrolar do tempo. É este ser ininterrupto, esta ambiguidade já nascida, despojada de linha ou de significado ou de vontade. Andar como um sobrevivente de um colapso interno, um colapso que acompanha o corpo desde um início plausível, um colapso que acrescentou o nome à espécie e ao género e ao tempo fixo da procura de uma verdade que se justifique. O vazio de querer anular os sentidos do próprio absurdo de dentro. Os sentidos quando vêm ao de cima raspam a carne com as suas garras de consciência alargada ou previamente morta, consciência despida de nexo, de linha, de voz, de lágrimas. Tudo abandonado em ventos de idades macabras, tudo abandonado, morto de fome e morto de vazio, sempre consciente do nada em si. Do nada insípido e atroz que se insiste como um grito de ouro, como um grito de revolta contra uma não identificação, contra um desejo superior de existir, de ser, de acontecer, de significar. Ouvem-se as vozes esquizoides por cima dos ombros ao andar nas ruas de ninguém da cidade deserta, quase abençoada, a cidade que se apresenta como uma falcatrua desconhecida, a cidade de desamores, de reprimendas infantis sem nexo e sem maldade. As vozes que se chamam a si mesmas para darem lugar ao outro, a velocidade do mundo, a velocidade de uma queda permanente numa linguagem que é preciso definir para que surja sem mácula e sem deus, sem noções espalhafatosas de crimes por acontecer, de fantasmas de carne e de perdão, sem os combates do fracasso prévio. São delírios sem coloração e sem batimentos cardíacos. As mãos descobrem-se na sua própria alucinação, o tempo salta como um fragmento em que o tempo se torna secundário, nada se diz que impeça os abismos da saturação e da ruptura. É um estar perdido em noções falsas, básicas, desumanas. Desnoções. O cuidado esquecido na ausência das cidades e na alienação metafísica dos transportes, o cuidado e o abandono, a relação escondida vê a sua luz fugir por entre os dedos de osso, o corpo fica sentado numa atitude contemplativa, ressequido no absurdo da existência. São os monstros. São os gritos das vozes. É o desconhecido das miragens. É o fim. É o fim sem máscaras e sem revoluções. É o fim das guerras e da memória. É o fim ridiculamente utópico de nenhuma salvação, de nenhum poder, de nenhuma trégua. A paz armada já não tem lugar no corpo e ele sabe-o, ele consegue ressentir o seu estado embrionário mas final, ele assume o seu carácter larvar sem metamorfose possível, sem desenvolvimento. Fala-se de esperança quando a esperança morre sufocada aos pés de soldados que falam do amor que sentem pelos coitados já feridos mortalmente e isto já não é metáfora. E isto já não é simplesmente desolação nem incapacidade, é o rumo do tempo, é o triste sentido do outro que olha mas não diz, que não olha, que se incapacita de se olhar no outro, que não se vê no outro a si. O espelho do mundo. Os olhos que se abrem para que o mundo entre, para que um eu escondido na garganta possa sair e que possa sair sem medo, sem muros, sem guerras internas que se tornam explosivas quando percebem que afinal não passam de ilusão. É este o verdadeiro tempo dos assassinos sem ética, que conhecem todas as formas de morte e todas as armas. É este o tempo a que se chama de fim, de interior. É a carcaça das histórias e de certos fantasmas invisíveis que pairam sobre os grandes crânios que desconheceram grandes épocas, que se desconheceram a si mesmos para que pudessem simplesmente sobreviver e assim cumprirem com o seu destino de carne e atrocidade, com o seu maravilhoso destino glorificado de homens baços, leves, quase perfeitos, o seu destino de sonho, o seu destino sem regresso. E assiste-se ao espectáculo da decomposição, a decomposição em tempo real, contornos indefinidos, mortes eléctricas, mortes infinitas sem necessidade e sem precisão. Dizem que é uma questão de vontade, dizem-me que é uma questão de cuidado, gritam-me com o silêncio mais ruidoso de sempre, um silêncio mortal, um silêncio arma, atafulha-se na garganta e no estômago, revolve-se, ejacula-se, dorme. As vozes falam num tal de renascimento e numa tal de sobrevivência, a vozes falam constantemente sem se aperceberem do seu fim. A respiração afinal é a única coisa que se insiste.

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