Pedro Fiuza nasceu em mil novecentos e oitenta. Ainda é cedo para qualquer nota biográfica.

texto 11

Imagine-se um corpo sem nome, não um corpo, uma amostra de corpo a acontecer-se, um quase corpo que espera. A viagem que se procura é a viagem do fim, o corpo sabe-o e por isso se recusa a realizar-se, o corpo luta contra o fim e lutar contra o fim é lutar contra o sentido da cabeça. A cabeça conhece o sentido abstracto da espera, ela cria a sua própria história mítica, ela descobre a sua forma ideal, o mundo impede as coisas de serem coisas. O resto é sempre o nada. A figura que nos acorda para o sentido é a figura mortal da mentira a que o mundo se obriga. Anda a faltar algo sem nome que nos faça voar.

Imagine-se o tal corpo. Quase corpo. Frio. Uma espera da revelação eterna, a revelação fantasma que pretende a salvação, a oferta da salvação, a dádiva da luz. Nada se resolve a acontecer. O conhecimento é já antigo e inútil. O conhecimento está já gasto. Mergulhado em fórmulas, em intenções, em construções sobre si mesmo para um falso desenvolvimento que é uma máscara. O corpo relaciona-se directamente com a ilusão, torna-se problemático, só a cabeça resiste ao falhanço universal.

O quase corpo, não um corpo, começa por levantar a mão, tudo bem. A mão da violência e a mão da escrita são duas mãos a mesma, duas mãos desconhecidas no mesmo braço que as ordena. Vários papéis no mesmo chão despido de objectos a que se chama a cabeça, chão por preencher, restos são mágoas e amostras externas de vazios conhecidos como paradisíacos, miasmas sem voz, seres explosivos por dentro e amorfos por fora, acreditam que resultam com a vida que julgam escolher, justificam-se com o destino e com a má sorte, furam revoluções de sentir. Enfim, o corpo que é, que foi, que será ou não será. O corpo conhecido, universal, neutro, ousa levantar a mão dupla e tripla no sentido para, ainda não sabe, se poder segurar, para evitar a sua queda nos abismos da mente perdida de si, desencontrada.

O impossível corpo consegue respirar, aceita a sua formação dispersa e reconhece a capacidade dos seus órgãos. Agarrar as coisas com as mãos é um dos primeiros grandes acontecimentos do corpo nascido. Um acontecimento musical. Depois inventa-se toda a fachada envolvente para justificar a respiração e para garantir o alimento. O corpo subverte-se na origem. Pergunto-me como seria se nunca tivéssemos um nome nem conhecêssemos as palavras, pergunto-me se a crueldade que parece não se desalojar dos nossos ouvidos nos deixaria ao abandono e a uma certa inevitável errância. Desconheço as respostas para os enigmas do mundo, prefiro os enigmas do corpo. Somos máquinas de acção, o caminho é o esquecimento e a cessação, o destino que nos resta é o nada e o pó, tudo parece simples.

O conjunto corpo levanta a mão e o braço e toca na cabeça como que adivinhando a origem do problema. A mão arranca os olhos, o corpo nunca vê. A mão enfia-se na boca e o corpo nunca diz, nunca grita, deixado ao poder do seu silêncio e da solidão, corpo cego sem possibilidade de fuga. Corpo deixado, evasivo, explosivo, mortal. O corpo sente o seu auto fracasso a corromper-lhe as entranhas e reprime a sua condição sem amanhã, o corpo é hoje ou nunca um corpo, o corpo decide esquecer-se de si para se aguentar em pé, cego e em silêncio mas resistente, cego e abandonado, impossível o futuro, mas a respirar, a respirar sem escolha, a sobreviver. Este corpo tem a forma humana da sua vontade. Mergulhado no desespero da consciência da acção.

De vez em quando acontece um estranho assumir dos enganos, a cegueira não se pode curar porque deus não existe e não há regresso ao tempo passado, o grito por gritar fica alojado na carne crua, na carne sanguinária e aí se insiste como cancerígeno, um grito não resolvido pode ser mortal, pode ser suicida, transformar-se em tempestade interna sem retorno, sem liberdade. Podemos, de facto, dizer convictamente que a vida não existe, que a vida é um grito infantil de fome que ficou por dar, por ser gritado. Que a vida é um momento incerto entre a vontade interna de gritar e a força externa de silenciar, que a vida é como a fome, que é como a água, que é como tudo, que é mentira. A vida talvez seja uma mentira que se insiste em provar para que se possa repetir. Uma condenação oblíqua, uma metamorfose que o vazio constrói para que o tempo se vá para a eternidade. Podemos dizer tudo. Podemos até dizer que o sentido que não conhecemos é a verdadeira causa do mal, podemos dizer que não existem causas e podemos dizer que não existe mal. Só o corpo sabe e percebe as existências passageiras da verdade, só o corpo sente a radiação violenta da vida, só o corpo resiste aos embates, a cabeça é demasiado fraca para se insistir como suficiente. Era uma vez… assim começa a minha história física.

Era uma vez um lugar onde não havia nada e onde só o nada podia haver, um corpo resolveu tomar o nada como seu para sentir a força da posse, o nada é uma coisa que não se pode ocupar, o nada pode assumir várias formas para se poder esconder, para poder resistir. O lugar agora ocupado pelo corpo tornou-se doente, o nada morreu em fuga, o corpo resistiu ao tempo.

Escrever palavras é cometer um crime incrivelmente racional, quem escreve tem uma densidade psicopata, exorcismo. A aventura desconcertante da vida em contacto com as folhas e através dos dedos, a mão da violência, tenho uma mão da violência, anda a pesar-me na cabeça mas não arranco os olhos nem enfio a mão na boca, prefiro escrever, prefiro fazer o exercício do esquecimento não livre, obrigar a memória a perder-se na informação nua, obrigar a cabeça a definhar. A minha mão da violência revoltou-se com a castração das coisas e deu um salto para a realidade, a mão existiu com o seu sentido um e deu um salto no rosto alheio quando o julgava intocável, a mão prova, a mão no rosto e no tempo, a mão quase homicida, a mão carrasco a pedir a penitência e a executá-la, a cabeça adormeceu, foi renegada.

Acontecem-me as fugas racionais do costume, sou desconfiado, existe um mundo que se recusa a ser explicitamente verdadeiro e que anda a defender o vazio do sentido porque não existe alma nem futuro nem nada, mundo que mata o tédio e respira aborrecimento, mundo da queda precoce, do conflito, da iconografia comum. Existe quem se apodere das imagens, quero dizer com isto que existe quem se apodere fisicamente das imagens e que só para elas viva. Caminhantes sem tempo e sem propósito, vagabundos do delírio, odeiam soluções que confundem com respostas, vivem da segurança que sempre tiveram e que não podem perder, não, porque ela tem um lado desconhecido que é perigoso, que é maligno, que é mortal, que é desgastante, que é pesado, que se parece com a morte, que é uma forma de compromisso. Compromissos nunca! Insiste o mundo. Insiste na forma da vontade, na forma da falsa piedade, na forma vazia do desencanto. Tenho de pôr o dedo na minha própria ferida para me poder lavar, para me poder perceber, ando a dar em louco com a miséria que me vejo a repetir. A fuga torna-se numa utopia para quem nada sonha, sou um sonhador terrível, quero fugir, nada resiste que mereça resistir. Ando para a frente com cabeça cada vez mais baixa, um dia chegarei ao chão e não me vou poder levantar. O corpo que defendo é um corpo perdido no desespero da forma. Gosto da imagem triste do palhaço, pintado de branco da morte e de preto das lágrimas a rir e a fazer rir da sua ou nossa própria infelicidade, o palhaço é um fenómeno técnico inventado para disfarçar um crime maior, a altura em que o riso faz perder a consciência, o riso traz o esquecimento, o riso carrasco do outro é o riso exorcista do próprio. Acredito que há crime nisto. A crueldade da figura do palhaço, implantada no imaginário infantil, coberto de balões e serpentinas e mundos cor-de-rosa e alegrias e meninos e meninas e anjos e bichinhos e coisinhas bonitas, mentiras, a ilusão a construir-se a si mesma para bem do cenário geral comum. Também eu sou palhaço, enfio-me num palco a pedir o esquecimento e a atenção, agora não pensem em nada, aqui está tudo bem, a morte está fora desta sala, a morte não existe mais, podemos mudar o mundo, nada disto é sério, saem daqui e entregam-se aos primeiros braços que aparecem para se esquecerem realmente que a morte é o que se respira em todo o lado.

Insisto na minha calma aparente, escrevo para dizer que existo, escrevo para me lavar da minha cabeça quando entra em luta com o corpo. O corpo quer desistir, a cabeça mostra a sua força, a cabeça quer viver, a cabeça quer continuar o caminho que não conhece, a cabeça quer fazer sentido, isto é importante para mim. O mundo tem de ser bom, o mundo tem de viver e tem de se insistir de outra forma, isto está a cair, todos vemos, todos sentimos a queda, todos a respiramos, ela faz parte da nossa vida. O dia em que se nasce é o primeiro dia da caminhada fatal, inevitável. Procuram-se coisas belas para preservar, voltar atrás é impossível, continuar com o caminho que se tem quando o caminho não funciona é um pecado contra nós próprios. Acredito que isto é verdade e já sei que a verdade é questionável e que tudo é tudo e que nada é nada e que é impossível não comunicar e outras frases feitas do livro do conhecimento filosófico geral, se déssemos um salto no que já sabemos já estaríamos noutro ponto da escalada e talvez fossemos finalmente humanos.

Lá fora o vento faz barulhos estranhos que lembram atentados microscópicos, preciso da salvação, estou perdido nesta falcatrua mascarada de esquema social e não sei como sobreviver, os bichos do trabalho e do amor, o amor talvez seja uma paisagem mítica numa ilha abandonada, pensa-se que está lá mas não está e depois nada fica ou tudo fica ou mais ou menos fica ou a vergonha fica ou o vazio fica e insiste-se no nada para o conseguir compreender mas a vida foge e chama-se-lhe medo em vez de falta de vontade. Neste mundo tudo tem de ser fácil. Ando farto de lutar. Ando farto de lutar com dificuldades impossíveis de vencer e como não as posso vencer vou fazer o quê? Juntar-me a elas? Não. Tenho de continuar a lutar, tenho de resistir para que um dia seja possível. Tenho de viver a minha humanidade, não posso fugir-lhe. Existe quem diga que não gosta de pessoas, como? Não gostar de pessoas explica muita coisa neste mundo. Há um funcionamento que me irrita constantemente, o corpo chega ao espaço e o espaço não existe, tudo foi mentira, tudo foi em vão, tudo foi tédio, seca, aborrecimento, insatisfação. Os espaços podem ter destes sentimentos desde que sejam espaços pessoas, o corpo no espaço ocupa o espaço do corpo, uma descoberta brilhante, estou contente com o ponto a que chego com a escrita. O corpo no espaço ocupa o espaço do corpo. Isto é quase uma revelação inútil. Já me deixo levar pelo momento, ouço música, danço absurdamente para me manter acordado, não quero sonhar, não quero dormir, não quero fazer nada que seja obrigatório, quero quebrar todas as regras da minha banalidade para poder ser feliz.

De vez em quando vou na rua e olho para as pessoas para tentar compreender-me, estamos todos despidos aos olhos dos outros, somos todos feitos do mesmo. A mesma carne crua vestida de nada, o sangue que corre entre os homens. Tenho de me manter calmo. Vou para a rua respirar o ar solto, as pessoas passam, são leves, transformam-se em ares apáticos de mudança impossível. Torna-se necessário continuar a desenvolver a forma do desgaste, tenho de ir ao fundo. Descendente da tradição do fogo mental, o fogo grita com as suas chamas, queima os cabelos biográficos, transforma a cabeça, tudo se chama atentado. O ritmo problemático da acção, o nada, estar cego e ao mesmo tempo invisível. Nenhuma imagem que acorde o sentido.

Um dia fiz o pior de sempre porque perdi a esperança, o corpo animal ganhou o controlo da cabeça, o corpo da sobrevivência despido de escolhas e com o nome da acção: violência. As coisas sem nexo. A alienação infantil que provocou o medo. Medo? Eu era então um mero desconhecido das viagens, deram-me com o fracasso, obrigaram-me a engolir a tinta da escrita. Pois então, tudo o que escrevi nos meus tempos de trevas está gasto e não serve para nada. Escrevi as cartas que nunca foram respondidas, escrevi a salvação da vida alheia e minha, não vou voltar a escrever a nenhuma entidade pessoa. O mundo não se assume como justo. Fui atirado à carnificina para ter de me desenrascar, a selva do quem puder que se salve antes que seja tarde e a envolvência traz um nome. É preciso fazer tudo antes que seja tarde. O poder do tempo a assustar a cabeça leve. O mundo repete-se no pior de si, o mundo contém a especulação da felicidade e nunca a felicidade compacta. Ando atrás de justificações que não existem e não querem ser expostas a uma possível verdade irrefutável, uma possibilidade. Estar perdido é só isto. Tentar perceber o rumo das coisas que não são já nossas, coisas alheias, coisas que ganham vontade, desconectadas, problemáticas na sua própria origem.

Apaguei na minha cabeça tudo o que me resolvi a escrever, foi o fim de um ciclo de sentido que se perdeu, o seu desaparecimento trouxe um vazio na minha história pessoal. Detesto rupturas sem caminho possível. Fico deprimido com a falcatrua dos seres que foram de ouro, deitam tudo ao ar, ao chão. Todas as minhas cartas foram lixo, espero que ardam com combustão espontânea, que os meus cabelos ardam com elas e que não cresçam nunca mais.

O amor é uma fraude inventada para ocupar um lugar não ocupado por nada, medida de precaução contra o outro, o poder do outro em nós, a força que se atinge com a queda faz pensar se vale a pena. Claro que não vale a pena, claro que nada vale a pena, ou tudo vale a pena se a alma não existe. Cedo à minha tentação de falar nisto. A mulher bicho na cabeça faz explodir os ossos que guardam o cérebro. Anda-se em círculos pelo nada, aquilo de andar nas ruas de gente estranha para poder ver se é tudo igual, a conclusão é nula, todos, mal ou bem, são infelizes, pudera com estas condições que o mundo tem para oferecer, as pessoas minimamente conscientes não podem ser felizes, não conseguem, a envolvência é mais forte do que o interior, a envolvência puxa para fora tudo o que se guarda por dentro do corpo, a envolvência é um segredo bem guardado e ninguém assume que o sente, a vergonha do social, a alienação de vítimas na fogueira do mundo humano, que bonito que é viver, não é? Viver. Andar. Lutar. Amar. Essas futilidades do espírito que nos vêm atormentar porque a gente precisa, o homem tem de ser atormentado e a vida é difícil, é a regra universal do caminho inseguro, a vida é difícil, conformem-se com a imensidão de toda a angústia, nada serve para a vida intocavelmente parva, para a infeliz incoerência dos sítios em que se consegue andar.

Sinto-me ferozmente eléctrico. Eléctrico porque habito um enigma do qual não há regresso. Preciso de saber se a conjugação das limitações das coisas se pode confundir com uma certa verdade que tem o estranho poder de mudar tudo. Preciso de saber. Por vezes torno-me num eremita do momento e fujo para dentro, preciso de saber, como seria se tudo mudasse? Como seria se uma união de forças físicas de densidade descomunal se resolvesse a mudar tudo? A descoberta limite de uma felicidade sem enganos, revoluções utópicas de repente possíveis, rasgos de alucinação, respostas, o mundo ao contrário portanto perfeito. Pensar nisto é inútil como matar a sede, tenho de encontrar a porta letal por onde se foge da intensidade. Ando a detestar o corpo, quero dizer que ando a detestar o corpo de uma maneira leve mas acesa, tempestuosa mas com fragilidade. É que tenho uma estrutura canina que se apoderou de mim como um fantasma dos que eu odeio, um fantasma do acaso.

Faço uma pausa na minha identificação para explicar que sou de fora de tudo e por isso me confino ao meu lugar de espectro, nas cidades grandes poderia ser confundido com um insecto de segundos. Faço uma pausa para me ver deste ponto analítico e sem estrutura segura, o nada é uma realidade sem esperança. Ando a fechar portas que nunca deveria ter aberto, portas intocáveis, portas de perigo, proibidas, maquinais, portas em que o passo a seguir é o abismo, portas que incluem a mão que nos empurra para tudo ser mais rápido, fulcral, exacto, da porta para a morte, nada mais a dizer, tudo é indiferente aos sentidos da vontade. Até nunca e outras breves e sinceras despedidas imaginadas em silêncio. Mundo sem pudor. Idade homicida.

Um dia enfiei-me num barco a saber a químico para me obrigar a acordar, acordar pode ser muitas vezes adormecer, irresponsabilidade minha, disseram que tinha duas fases, que tinha menos que a lua, não gostei, comecei à procura das outras fases que queria ter ou apenas provar que tinha ou nem isso, as fases desconhecidas embalaram-me noutros barcos e levaram-me para outras imagens, nenhum sabor químico voltou a funcionar apesar de todas as sucessões de frascos, nada disto interessa aos olhos dos outros e faço disto segredo absoluto, hoje digo tudo: eu sou cego, surdo e mudo. Nada disto cai a meu favor na conjuntura actual que nos pretende obrigar a agir, eu como cego, surdo e mudo, pretendo votar na lei criminosa do explosivo, ser contra tudo e todos e ter a certeza de estar redondamente equivocado. Demasiado tarde.

A espiral nascida do umbigo já circula a acompanhar a idade, já altera a fome e o sono, já se procura. Acho que ando a copiar palavras lidas em livros escritos noutras épocas, sou um estudante do mundo e tenho a capacidade de nada saber, nem gosto do domínio, sou dos da abstracção, parto da vida para chegar ao lugar em que tudo flúi e nada se imagina, convido-me a uma viagem de resistência sem contornos esquizoides de limite e saturação. Preciso de não parar por aqui, andar em frente na aventura vida sem olhar para trás. Tenho as palavras que uso sempre e só com elas me lanço na escrita, não sei mais do que isto, a juventude não deixa a aventura ir longe, não sabe reagir. Escrevo o que quero e o que sei, pego no acontecimento sempre e escrevo-o, torno-o registo de passagem, lanço-o para a terra infinita, escrevo gritos, está visto. É tempo.

Dias há em que adormeço nos lugares habitados por figuras carnívoras e penso que tudo é pesadelo, esqueço-me que tenho um olho aberto enquanto durmo. Vêm objectos e pessoas contra o meu corpo adormecido e pedem-me que respire em paz, um pedido parecido com o pedido dos mortos, acusam-me de desgostar de estar morto, claro, quem é que gosta de estar morto no meio dos abutres que nos comem ainda vivos e quando não esperamos? Quem é que quer ser comido por rastos de humanidade? Também admito que ando estranho, as coisas andam a recusar-se a correr bem, as coisas tomam o seu rumo fatal de coisas, é mesmo assim, life goes on, sad but true, you are nothing thinking you are something. As verdades que se escondem nas palavras banais tocam-me por dentro sem eu querer, vivo dos lugares comuns, isto um dia passa, isto há-de ir-se embora para um lugar de esquecimento. Resolvo-me a sair de casa sem rumo em vista, construo castelos de areia que não resistem ao vento, claro que estou fraco, ando a tremer das mãos, os sítios públicos dão-me a volta ao metabolismo do corpo interno, nota-se por fora, enfim. Tenho de ter força, ando a insistir, tenho de conseguir saltar deste sistema medíocre, da terrinha vazia com sorrisos de falsidade e de vergonha. Fugas.

É a revelação que se procura em todos os lados e ninguém é paciente para a esperar, são os vícios do mundo, a capitalização das relações demonstra este lado visceral da tentativa, a recusa do trabalho e da dificuldade, se for imediato que venha, eu também sinto esta ansiedade brutal a comer-me por dentro, a pulsação adversa do corpo respira demasiado veloz, a ansiedade aumenta em certos lugares e em certas situações, nada fica para resto, tudo é passageiro.

Ando a desfazer o ego, importante, talvez um dia me reconheça como parte integrante de um sistema que também passa por mim, desfazer o ego é resolver o sentido humano que tenho em mim, é descobrir um lado interior da verdade. O mundo também desfaz o seu ego generalista mas recusa-se a ir ao fundo, para quê descobrir alguma coisa de importante se o futuro é uma mentira e se o presente é já uma queda. A resposta: por uma questão de princípios e de consolo e de verdade e de humanidade. O único tema digno de ser reflectido é a humanidade, o mundo. Este é que é o problema central da vida, esta é que é a resposta final ao chamamento suicida, qual é o ponto mais baixo a que o homem consegue chegar? Qual o limite? Se deus não existe que se invoque o seu sangue criminal e que isso nos traga descanso. O corpo precisa de descanso, a vida precisa de descanso, o ritmo é uma alucinação da vontade, maquinal, frenético, sobre a corda da sobrevivência, sobre a corda do pseudo fim, sobre o abismo do vazio alheio.

E se tudo fosse diferente? A tal pergunta. Isto não sou eu! A tal facilidade com que o homem se desculpa, não, eu sou culpado de todos os meus erros e enganos e falcatruas e verdades e coisas más e coisas boas e tudo o que fiz seja o que for. Eu tenho a culpa escrita na cabeça e ela não me larga, não me deixa respirar, empurra-me para fora mas eu não consigo sair, estou fraco da mortalidade das coisas efémeras, como se a imortalidade fosse um mito, como se a eternidade fosse um mito. Hoje tudo tem de ter um carácter de urgência para se justificar, o tempo assumiu esse lugar do poder e a vida passiva obrigou-se a aceitar a sua inevitabilidade. Não quero. Detesto o peso que o tempo não tem. Detesto a vontade. O tempo do caos caminha ao nosso lado e não em nós, etc… insisto-me para me poder manter seguro. Estou à espera da derradeira queda. O olhar que se rebenta a si mesmo como uma convulsão. Estou a falar de lágrimas, a capacidade absurda dos lugares, ando a ter força, ou seja, incrivelmente, ainda não caí. Ainda tenho força para viver de uma maneira absurda. Não caí. Importante. Tenho uma esperança quase mítica. Uma esperança que combate a falsa brutalidade dos acontecimentos. Vazio. Eu.

Ando a escrever-me quase insistentemente em todos os lugares, nem o nada assusta a cabeça despida. Estou cansado. A falcatrua alheia assume o seu papel criminoso, tudo me atinge, as mãos temem do seu próprio fracasso. Invento vozes. Pior – invento palavras para vozes. Quase me detesto imaginar na estrutura. Isto é uma má viagem. Nada me atinge tanto como o ritmo. Dançar. Dançar. Saltar até ao abismo limite das coisas ligadas. Previamente desligadas. Insuportáveis. A sua imagem na minha vida assume uma proporção monstruosa, vivi assim durante o tempo sem importância, infelizmente imaginei-o verdadeiro. Bato com a cabeça no chão com o exagero de uma brutalidade que ajudei a construir. Estou à espera de uma quase realidade paralela que me separe da verdade e me ajude ao esquecimento. Nada me grita que me levante deste estado dos enigmas. Todos os seres são figuras enigmáticas aos olhos dos outros. Estou vivo, nada mais que me assuste. Estou vivo e com os olhos colados num papel que nada pode fazer. Escrever é um acto físico. A cabeça nua limita-se ao apelo do nada que procura. Escrever tudo não muda nada, a escrita parece nula para o mundo, nada, nada, nada, nada que se levante para o futuro como um eco de um grito que perdura na monstruosidade do tempo. Tenho medo do ouvido. A cabeça nua, mostra a sua verdade escrita e só ela a consegue agarrar. Todo o mundo é desconhecido de um possível resto. Olho. Não. Recuso este contentamento infeliz, este fraco consolo do nada. Tudo me assusta. O nada anda a invadir a cabeça sem brilho. Ainda não caí. O consolo está longe de se vingar. O cadáver da acção. A realidade de dentro a arranhar-se, a pisar-se para reagir, a esquecer-se de si. Ando a evitar o ego, a desprendê-lo, tudo passa pelo esquecimento absurdo do ego, o ego deve ser a zona suicida do espírito, o ego deve morrer para que a suposta verdade viva. Ando a acreditar em coisas estranhas depois das acções homicidas. Pensamento religioso. Eremita dos caminhos solitários e da música e de alguns livros mágicos. Ando a pensar a minha morte como um bloco de notas, apontamentos específicos de metodologias e consequências exactas, resoluções, técnicas suicidas, fantasmas de dentro, venenos, armas perfeitas, desenhos do corpo contra o chão, a derradeira queda universal, a aldrabada inconsequente dos lugares do outro, a pseudo transparência das coisas opacas e mal pintadas. Quem sou eu no meio disto? Um mero bicho que se atafulha de intensidades diversas para morrer cedo ou tarde ou nunca. Um insecto sem ciência objectiva. Quero mudar de assunto para voltar à abstracção da verdade crua.

Desculpem a minha existência reles de fracassado, condenado ao não funcionamento, tudo me falha, as coisas parecem enfeitiçadas e eu não acredito em feitiçarias nem em espíritos nem em nada, não acredito em nada, este é o meu niilismo do acaso e da acção, quero e sinto que tenho de chegar ao meu fim para poder existir nulo, a minha vida é uma queda, apercebi-me disso muito cedo quando troquei jogos de formação por jogos de solidão, quarto fechado, a casa alheia a própria, livros de ficções, teatrinhos mentais, estupefacção, alienação, morte à vista. Era apenas uma pessoa quando vieram com as ideias das máscaras e das palavras, com a escola da vida e da violência interna. A criança que não fui, as guerras absurdas dos adultos e as psicoses sem sentido das famílias em crises sucessivas sem qualquer explicação, não pude escolher o presente que tive, não importa, agora é tarde, não tive direito a paz, foi uma paz armada, fui ficando por dentro, solitário, sem palavras para o ouvido alheio, desenvolvi as minhas máscaras, desenvolvi tudo o que não devia, parece que tenho peso, parece que não evita a fuga de mim, o peso, este peso que me consegue alterar o rumo e o ritmo das coisas, este peso que me destrói a capacidade humana de ser simples como as coisas, quero o quê? Quero a evasão, nada se realiza, nada me visita de uma forma completa. Obrigado a viver com os monstros do mundo, a imagem do vagabundo errante não me solta a cabeça acordada.

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