Pedro Fiuza nasceu em mil novecentos e oitenta. Ainda é cedo para qualquer nota biográfica.

texto 12

São as ruínas de uma cidade estrangeira aos olhos do mundo depois de uma queda, habitantes insectos em busca de uma sobrevivência de mentira, de uma revolução no viver. É uma amostra de uma fraude sem precedentes, os corpos estão demasiado magros para poderem andar, os corpos arrastam-se pelo chão, ganham feridas profundas muito perto dos ossos, demasiado profundas, demasiado perto. Existem seres que são mais fortes do que outros, são os que assumirão o sentido da praga, da propagação da espécie. Existem crianças sem memória, sem qualquer elo com o passado, sem qualquer glória, título, família, sustentação, crianças previamente mortas, crianças dependentes da vontade alheia, da vontade que não se vê, que talvez não exista. Os corpos dos mortos mortos estão já desfeitos, servem de comida para os cães e de adubo para as plantas de amanhã, não há quem os enterre. O novo mundo é um fervilhar de doenças e de contágios inconscientes, ainda não houve tempo, a convulsão foi recente e ainda não tem explicações, talvez não tenha nunca, talvez tenha sido a primeira de uma convulsão maior, como uma tosse, como um ataque de um vírus desconhecido que se apodera do corpo e lhe tira todas as noções, que lhe rouba a salvação. Este novo mundo está já gasto e desconhece a profundidade, o objectivo máximo é a sobrevivência, é o homem animal, é o estado puro da verdade, é o estado neutro do vazio depois da linguagem e do pensamento. O homem resto vive de novo com a imagem na cabeça, o seu conhecimento é a necessidade. Os homens velhos não sobreviveram ao colapso, as mulheres quase não existem, todo o futuro está comprometido, a violência acontece, a violência ocupa o seu lugar de sempre mas mais perto da crueldade natural, outros chamar-lhe-iam selecção, outros animalidade, outros nada. O futuro depende das escolhas e da capacidade de criação, o mundo não conhece as suas alternativas, está perdido, não tem rumo, não tem deus, os homens andam à deriva, em busca de consolo. É assim que surgem os primeiros gritos da verdadeira fome, da fome de dentro, da fome física, da fome sem a satisfação imediata de outros tempos. O mundo andava acomodado ao seu próprio silêncio, girava eternamente no mesmo sentido perverso, repetia-se, abusava de si e do que considerava como ganho ou inevitável. O mundo que vivia no mundo era resplandecente apenas para si mesmo, nada mais importava, o cuidado era impossível. O ser humano dependia do seu próprio fracasso para triunfar. Mundo de angústias e de desolação, inconsciente, sem o sentido de crime, de liberdade, de libertação. Houve revoltas silenciadas, vão haver sempre, até agora que tudo se foi vão existir fracos e fortes, vão haver uniões de sangue e de princípios, de feitos marcantes e de glórias inúteis, o bicho só muda nas condições, a perspectiva parece ser eterna, faz parte. Existe algures um homem no meio das pedras que grita por socorro, não importa. Existe algures uma criança que grita por alimento, não precisa. Existe algures uma mulher que pede ajuda, que está presa, que não tem rosto, que está quase morta, o homem vem e agarra-a e abusa-a e atinge-se a si mesmo com a mesma desgraça carnal que se apoderou do mundo antigo, a mulher indefesa é um objecto sem alma. É preciso odiar o ser que vive no fundo para o expulsar, é necessária a coragem para o descobrir, para o enfrentar, para o aniquilar. Houve homens e mulheres que bateram fundo e previram o caos, silenciados por um nada que os tornou não importantes. O novo mundo é o colapso do velho, é a ruína de uma espécie sem qualquer trono, sem qualquer salvação. Condenados a viverem da sua própria miséria, vão caminhando errantes em busca de um nada maior, de um rasgo de felicidade. A esperança dá-lhes força para um caminho desligado da realidade, ainda não sabem que não existe nada, que tudo foi, que a desintegração da abundância aconteceu de facto, que um qualquer momento no universo resolveu matá-los, resolveu tirar-lhes o sentido que nunca tiveram e que sempre procuraram com a sua ambição de dejectos e de poder. Nenhum deus lhes diz que não existe nada. Eles insistem no percurso solitário, acreditam que se encontrarem a felicidade momentânea ela lhes trará a resolução, que se encontrarem uma amostra de felicidade semelhante à de outrora poderão ser líderes do mundo novo, espíritos superiores. Não sabem também que o espírito não existe depois da queda, só existe carne, que vão acabar por se comerem uns aos outros quando virem a verdade, não existe nada, não existem possibilidades, armas, água, alimento, não existe nada que se possa açambarcar, nem sequer existe a própria realidade. O novo mundo destruído é um fantasma do velho mundo da glória vã, do velho mundo do massacre de uns e do engordar de outros, o velho mundo foi o construtor inconsciente do novo, só por isso o novo é assim, vazio e irracional. O homem inventava palavras para protecção, agora está totalmente despido, exposto a tudo, exposto à erosão. No meio das ruínas o som é de um vazio denso que se infiltra nos ouvidos e que se chama medo, o silêncio sente-se a entrar nas coisas, o silêncio sai das pedras e da terra e dos mortos, o silêncio do terror. O terror de antes era uma fraude quando comparado com este, este terror terror, esta imensidão de morte e de abstracção, antes o terror era uma desculpa sem sentido para um fim absurdo, já o homem ia no último estádio antes da sua queda. Imagine-se um planeta a perder o sentido da órbita, da atracção à sua estrela-mãe, do seu sentido no universo, imagine-se um planeta a cair, a perder-se eternamente no vácuo, a despenhar-se eternamente no fim, no vazio sem fim, a girar com a força centrífuga com uma velocidade inimaginável, um planeta a gritar, um planeta suicida, um planeta como um anjo caído. As rupturas dão-se no interior como uma convulsão de sangue e líquidos orgânicos, nada sobrevive. Num mundo em que os homens caminham para o nada e para o desgaste, o nada parece ser o sentido e o desgaste a finalidade, nada importa para as cabeças que dormem nelas mesmas, tudo contém tudo. O sentido é o presente e o futuro, o passado já lá foi, o passado não volta, está morto. Falta música que nos embale.

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