Pedro Fiuza nasceu em mil novecentos e oitenta. Ainda é cedo para qualquer nota biográfica.

texto 14

Existe portanto um local imaginário em que respiras, em que sou sombra e não presente, em que durmo. Gostava de me tornar réptil, de andar em busca de insectos que não me dessem nunca alimento, o corpo nunca saciado de vida e sempre intermitente, em caminho sem tempo. Só pedia o fim do vazio, desta ausência de sentir, pedia a luz do mundo, a imagem nítida de uma base sem contacto com os restos de coágulo da memória. Desconheço a chamada glória das acções imediatas, não me parece que os círculos da carne obedeçam a tais regras da matemática e do acaso, tornado deus ou uma verdade. Sou um bicho enfiado num casulo por proteger, não faço promessa alguma de melhores dias ou noites, nem sei se me conheço por dentro como me desconheço por fora, parti os espelhos que os olhos criaram com as mágoas, com tanto desprezo que me mandaram quando estive em guerra comigo mesmo, soldado dentro de mim, aparentemente frágil e convexo, sem retorno, sem saídas. Ando em cordas que abalam as coisas, cabelos desconhecidos, sem vozes palpáveis e sem corpo fixo para se apagarem com o grito que o eu bicho lança para a terra infinita. Não tenho sido um grande homem, nem sei se tenho sido homem, pois de noite tenho acordado com a baba dos pesadelos da consciência, com as descargas mais brutais dos líquidos da cabeça. Insecto. Costumo ver-me nessa figura inanimada dos livros da biologia. Insecto e transparente. A mentira deverá ser um crime quando formos perfeitos, a maldição da espécie que fala e que pensa que pensa. Infantilidade. Salvação. Este vazio que se sente no fundo de nós e se recusa a desistir porque não tem um alvo de combate ou de amor. Noite após noite tenho-te sentido distante, mas tenho-te sentido. Criminoso. Tenho roubado imagens à memória da vida e com isso me tenho mantido acordado, como num sonho. Escrevo barbaridades sobre a vida que não possuímos, sobre a vida que não temos, sobre os nossos pés descalços, em atitude quase religiosa, sem olhares para fora de nós. Caminhante dos sentidos sem forma, por aqui tenho olhado para o que sou e para o que não somos, quando me mandas embora quando estou a dormir com os dois olhos abertos e sem cansaço. É verdade, tenho fugido a muita da porcaria que me têm obrigado a comer, tenho-me enganado. Odeio a minha tanga. De um lado sinto o meu esqueleto demasiado apertado para aquilo que me ocupa, a minha capacidade volumétrica não consegue abarcar nenhuma área de nenhuma acção concretizável, sou um risco. Isco de nenhum nada. Salto de casa como quem apanha chuva nas províncias do corpo aéreo. Já pensei nas formas ideais de morte, estou sempre solitário nas minhas imagens mentais, caquético e encarquilhado, com o cérebro de quem sou no limite do desvairado. Invento estas comédias sem nexo para me inventar a mim, para ter a certeza do que não escolho por que não posso e não existe quem pergunte se quero. Os fogos da alma, quando o espírito se agita numa imensidão de tempos adversos, incendeiam a cabeça sanguinária. Escrevem-se coisas oblíquas que nos atravessam muito e não nos tocam nunca. Existe medo em mim, eu sei que ele existe; de noite espreito pela fechadura dos sonhos e chego a esta merda de silêncio, dos ouvidos carregados de vácuo, dos membros numa ferrugem aquaticamente solitária. Tenho uma toca de barro pintada com cores infantis e amostras de líquidos orgânicos, não ouço nenhuma voz quando me fecho lá dentro, não consigo alucinar nenhuma falcatrua, criminoso porquê? Porque se acredita ainda que cá dentro que o mundo irá girar contra o sentido dos ponteiros do relógio da memória das coisas. Medo. Esta vida de mediocridade que temos de aguentar para respirar em paz. Hoje tenho estas coisas para dizer, o sentido apático não larga o meu apêndice intragável, respiro porque o meu corpo a isso me obriga. Invento armas porque o meu carrasco me compra a minha vida. Isto. Consumo. Alienação precoce. Preço. Mão incandescente na cabeça da mulher, o homem pulverizado em fragmentos de metáforas filosóficas. Aguentar a impaciência do limite. Nunca parece ser permitido a uma vítima que sinta a pressa. Mas tens razão, escolho muitas vezes caminhos totalmente errados, a imagem ambígua das minhas conexões sem nexo, com a envergadura do tudo, dessa mentira sem rasgo, no reino vegetativo em que nos encontro. Peço apenas um silêncio incomodativo ou um gesto de loucura, um ponto em que se anule toda a linguagem, e o espaço e o tempo deixem de ser barreiras sem visibilidade, e sem as traições do porque sim estampadas no rosto pintado de medo e de vergonha.



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